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2 Anos da Rede Extremo Sul

Manifesto de 2 Anos de Existência da Rede Extremo Sul

A violência do Estado e dos proprietários contra o povo sempre existiu, mas cresceu bastante nos últimos tempos. Nas grandes cidades, essa violência aparece de várias formas: a destruição de comunidades inteiras pelos despejos, as ações higienistas e a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, a militarização da gestão pública, o aumento da presença da PM nas ruas e nas quebradas, o que significa maior número de homicídios e o encarceramento em massa, sobretudo da juventude pobre e negra das periferias.

Em São Paulo, o Massacre do Pinheirinho, em janeiro deste ano, é um caso muito emblemático de repressão e da demonstração de poder contra o povo organizado. Neste momento se escancarou que o interesse econômico pode ser colocado acima de qualquer coisa, e principalmente da vida de familías e de militantes.

Do ponto de vista do povo e da construção do poder popular é preciso, portanto, reconhecer que vivemos em tempos difíceis. Diante dessa situação, é muito fácil para um movimento popular ficar vendendo ilusões, preso ao imediatismo, ao jogo da mídia, às mesas de negociação com o Estado, e realizando mobizações que parecem radicais, mas que são pensadas por uma meia dúzia que se acha “iluminada”, enquanto a maioria das pessoas que participam delas nem sabem direito o que estão fazendo, e acabam virando massa de manobra, em busca de um “salvador da pátria”. Em vez de atuar pelo fim da opressão e pela emancipação, o movimento acaba fazendo o contrário. Não é à toa que tantos lutadores de ontem são os inimigos de hoje, ocupando seus cargos no Estado e nas empresas, e usando o conhecimento que eles adquiriram no interior das lutas contra o povo organizado.

As lutas diretas em reação às ofensivas do Estado e das empresas são fundamentais, mas a opressão capitalista atua o tempo todo, em todos os espaços, e pelos mais diversos meios; por isso, a construção do poder popular exige também formas de organização permanentes, cotidianas, levantando as mais diversas bandeiras, de maneira integrada, e tentando criar laços de solidariedade, de companheirismo e de ajuda mútua, opostas ao “cada um por si” que domina em todo canto. É no interior desses processos organizativos de longo prazo que as lutas irão adquirir um caráter de libertação, e que serão acumuladas as forças para garantirmos nossas conquistas.

Além da questão da moradia e de outras necessidades básicas da vida, relacionadas à saúde, ao transporte, à educação, etc., recentemente começamos a encarar de frente outros desafios que são muito presentes em nosso dia-a-dia: um deles tem a ver com o encarceramento em massa, e nesse sentido temos nos organizado numa rede de familiares de presos e presas, tentando nos fortalecer contra o sistema prisional, penal e a violência policial que tanto nos oprime. Além disso, queremos criar formas de auto-sustentação que contribuam com nossa autonomia, e confrontem, ainda que de maneira tão modesta, algumas formas de exploração da qual somos vítimas. Assim, estamos iniciando algumas pequenas experiências produtivas, por meio da autogestão, e somando nas lutas de cooperativas de reciclagem da Zona Sul, que têm sido alvo de um projeto governamental de tirar das mãos dos catadores o controle sobre o trabalho.

Os nossos espaços de organização são mínimos, localizados, cheios de problemas. Uma festa em que umas pessoas fazem uns bolos, outras descolam umas bebidas, outras enfeitam a rua, e se compartilha tudo de graça; um sarau no meio da rua, em que se partilha música, poesia, dança e se troca altas idéias; uma projeção de vídeo e uma discussão com a criançada; pequenas reuniões; pequenos protestos; é essa nossa escala de atuação hoje. Mas em todas as nossas ações, onde não entra nem dinheiro nem voto, tentamos afirmar a auto-organização – o fazer “nós, por nós mesmos” – e a nossa independência em relação ao Estado, aos politiqueiros e aos patrões.

E isso, inclusive quando eles se disfarçam atrás de uma pele de cordeiro, “amigos do meio ambiente”, “amigos da periferia”, ou mesmo “amigos da cultura”, agenciadores que buscam transformar tudo em mercadoria, inclusive a cultura popular de resistência, e transformar os produtores dessa cultura popular em pequenos “empreendedores”, debaixo de suas asas. Mas aqueles comprometidos com os processos de mudanças reais nas comunidades sabem que nada que não seja construído pelas nossas próprias mãos e cabeças serão conquistas verdadeiras para a periferia!

Considerando esse contexto em que vivemos – no qual as formas de organização e de lutas diretas estão muito desacreditadas e a repressão rola solta – são essas algumas de nossas tentativas de colocar em prática uma proposta política de resistência, de enfrentamento, e de auto-organização popular. Para tanto, é necessário fortalecer nossa prática nas comunidades e nos coletivos que integram a Rede, melhorar nosso planejamento, nossa divisão de responsabilidades, nossa capacidade de avaliação e de crítica sobre o que fazemos, assim como o espaço de iniciativa de cada um de nós. Este processo é lento, difícil, e se insere numa longa história de lutas, no interior da qual o esforço e o compromisso de cada um faz muita diferença.  

Nois é pouco, mais é zica, mas aos poucos deixaremos de ser tão poucos, e seremos ainda mais zicas, na construção do poder popular nas nossas quebradas!

Periferia luta! Ontem, hoje e sempre.

Rede Extremo Sul, fevereiro de 2012

Manifesto de um ano da Rede de Comunidades do Extremo Sul

Manifesto:  Um Ano de luta da Rede de Comunidades do Extremo Sul

O povo de nossa região, assim como o povo de toda a periferia, sempre lutou por suas necessidades: cada escola, cada posto de saúde, cada linha de ônibus, cada rua asfaltada, até o acesso à água e à luz, foram resultados de várias batalhas no passado, feitas por muitas pessoas que sabiam onde o calo apertava, e acreditavam que a vida podia ser melhor. Essa consciência, essa união, e essa organização popular que trouxe uma série de conquistas, já fizeram tremer os “poderosos”, e poderão fazer novamente.

Foi com esse espírito que, em fevereiro passado, criamos a Rede de Comunidades do Extremo Sul, buscando fortalecer essa cultura de luta, de resistência e de solidariedade de classe, num momento em que reina o individualismo, a acomodação, e a arrogância de querer ser melhor do que o vizinho, e portanto de não se importar com suas dores e suas alegrias.

Na época de surgimento da Rede Extremo Sul, sofríamos não apenas com os despejos que se tornaram comuns em nossa região e em várias outras regiões de São Paulo, mas também com a calamidade das enchentes que atingiram algumas comunidades. Diante dessa situação, travamos pistas, marchamos, protestamos e até nos dispusemos a negociar com nossos inimigos, os donos do poder. Perdemos algumas batalhas e conseguimos resistir a outras ofensivas; vimos como é grande a força da estratégia usada pelo Estado e das construtoras para nos dividir, fragmentar nossas lutas, aliando a entrega de migalhas – que compram algumas lideranças e silenciam muitos dos que estão sendo removidos -, a uma repressão crescente, tratando os problemas sociais como crimes da população pobre contra o Estado, e mobilizando a polícia para não permitir qualquer manifestação do povo indignado com as injustiças que sofre.

Diante dos cheques-despejos disfarçados de bolsa-aluguel, e da falta de uma alternativa habitacional real, percebemos a mentira do discurso “humanitário” dos governantes, que dizem estar fazendo isso para nosso próprio bem. Outro discurso que se revelou mentiroso é o da defesa do meio ambiente: por que não se faz nada com as grandes empresas e as grandes mansões que também se encontram em áreas de mananciais? Por que não se cria infra-estrutura nas nossas comunidades, como redes de esgoto e sistemas eficientes de coleta de lixo? Por que não se dá alternativa aos que são removidos, obrigando-os assim a ocupar uma nova área à beira da represa ou de um córrego? Logo descobrimos a resposta destas e de outras perguntas: que se danem as nossas vidas ou o meio ambiente, quando se trata de encher de dinheiro os bolsos dos “poderosos”. E é isso que estão fazendo as grandes empresas – construtoras, incorporadoras, imobiliárias – e muitos políticos, que aliás têm suas campanhas financiadas por essas empresas.

Por mais duros que tenham sido esses ensinamentos, eles serviram para nos fortalecer, de tal forma que, ao completar um ano de existência, temos sim o que comemorar. Nesse período, passamos a nos reunir periodicamente para discutir os problemas de cada comunidade, tirar nossas pautas, decidir coletivamente nossas próximas batalhas. Outras comunidades se juntaram à Rede, sendo elas também vítimas da violência dos despejos e colocadas em situação de risco por obras que têm em vista o lucro e poder de alguns, mas não a melhoria das condições de vida da periferia. Lutamos pela moradia, mas também lutamos com as mães e reconquistamos juntos com essas mulheres guerreiras o direito à creche, que foi violado pela privatização do sistema de educação infantil; estamos juntos com estudantes, professores e comunidades que lutam pelo fim da opressão e autoritarismo no interior das escolas e pela qualidade da educação; e também com lideranças que lutam pela melhoria do transporte e da saúde de nossa região. Junto aos grupos de cultura, nos fortalecemos ocupando espaços e ruas, becos e vielas de nossas comunidades, criando autonomia para nossas manifestações que aliam uma arte e uma comunicação produzidas por nós mesmos com a luta cotidiana. E tivemos a satisfação de travar contato com outras lutas, como a iniciativa combativa e transformadora de cooperativas de catadores de papel, com quem temos todo o interesse em caminhar juntos.

Comemoramos também porque aprendemos com as derrotas e sabemos que nossos desafios são imensos, e que estão na ordem do dia de toda a periferia. Os próximos tempos serão sombrios, pois com o lucrativo projeto de transformar a imagem da cidade para os mega-eventos, como a Copa do mundo e as Olimpíadas, os ataques contra as populações pobres de São Paulo irão aumentar. No entanto, a cada dia tomamos mais consciência de nossa classe, reanimando a solidariedade entre nós, e percebemos que “nós” somos milhões. Estamos no extremo sul da cidade, mas também nas imensas periferias mundo afora.

Sabemos que as lutas que travamos são muito pequenas, insuficientes, localizadas. Mas temos ousadia de lutar, e de seguir um caminho honesto e autônomo, sem ficar debaixo da asa de políticos, de ONGs, de empresas, e sem nos subordinarmos ao Estado. Seguiremos dedicados à nossa organização de luta da periferia, por uma sociedade sem classes.

As tarefas do nosso tempo nos desafiam a estarmos sempre nos renovando, mudando de estratégias, propondo novas formas de nos organizarmos, diversificando nossas bandeiras. Hoje acreditamos ser importante articular e unificar algumas experiências organizativas que estão sendo desenvolvidas em nossa região, mas também em outras. Se buscamos combater com nossa prática a fragmentação das lutas, a divisão entre líderes e liderados, entre os que pensam e os que executam, entre os que mandam e os que obedecem; se somos contra a profissionalização da prática política, e a aplicação de modelos e fórmulas prontas, que não respeitam as realidades de cada lugar, pensamos também que não podemos cair no isolamento. Nos próximos meses, junto com outros companheiros e companheiras de caminhada, nos dedicaremos à criação de uma ferramenta organizativa que garanta ao mesmo tempo a autonomia das iniciativas em andamento, mas que as unifique em torno de bandeiras e estratégias comuns.


 

 

A periferia está em luta!

Rede de Comunidades do Extremo Sul, fevereiro de 2011.