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Quando a farsa vira tragédia

Quando a farsa vira tragédia

Foi dito que a história se repete; ao que se emendou: primeiro como tragédia, depois como farsa. Mas o bizarro espetáculo que vem sendo encenado em terras brasileiras, parece a farsa, da farsa, da farsa.

militares_manifestacao_15_de_marcoTambém se falou que as sociedades modernas só existem em constantes e radicais transformações: são revolucionárias por natureza. Ao que se acrescentou: algumas dessas sociedades se transformam por meio de acordos e rearranjos vindos “do alto”, as chamadas “revoluções passivas”. Se a história brasileira nos últimos séculos foi marcada por muitas e importantes lutas sociais – contra a invasão portuguesa, contra a escravidão, contra a exploração assalariada, contra ditaduras, entre outras -, episódios em que os debaixo afrontaram as tantas opressões que sofriam, é evidente que a coragem, a dedicação e a organização dos subalternos não foi suficiente para virar esse jogo. E isso mesmo se consideramos que boa parte dessa história de luta foi violentamente apagada por uma elite sanguinária, de uma ambição sem qualquer limite, que sempre morreu de medo dos debaixo, e massacrou quem ousou se opor aos seus desmandos.

Uma das coisas que distinguem a situação atual é que a barbárie e a ofensiva promovida pelos endinheirados não é uma resposta a qualquer confronto ou ameaça popular. E ela também não implicapm spray em nenhum tipo de sacrifício por parte das elites, na linha do “vão-se os anéis, ficam os dedos” . Ela segue outra lógica, que já opera há tempos: à falta de uma oposição real, à falta de forças sociais que coloquem freios à sua sede por dinheiro, a palavra de ordem é: “ficam os anéis, e passem todo o restante do ouro pra cá: agora!”. Além do velho mandamento: “depois de mim, o dilúvio”, ou seja, “para mim tudo, e que tudo o mais se exploda”.

Essa situação óbvia é escondida por uma grossa cortina de fumaça: a grande mídia zomba da nossa inteligência, martelando besteiras sem parar; de modo geral, o resumo da ópera é que a origem de todos os males da humanidade é a corrupção, entendida como um problema moral. A corrupção é um sintoma, é a expressão de uma doença terrível e muito resistente, que precisa ser entendida para ser combatida (afinal, não se vence a gripe atacando o espirro, mas sim o vírus). Essa doença é a própria vida escravizada pelo imperativo do lucro; em um mundo em que “Deus é uma nota de 100”, o dinheiro corrompe, e a corrupção, sob diversas formas, prevalece, sob qualquer governo, de qualquer partido.

pm com crianca 15 de marcoAssim, por detrás da tal cortina de fumaça vemos algo muito simples: o que está em jogo são meros acertos entre os ganhadores de sempre. Afinal, além de injustiças e desigualdades, uma sociedade guiada pela ganância desenfrada necessariamente gera crises, riscos e perdas. Depois de terem lucrado muito, em tempos de relativa bonança e de muitas fraudes, agora se trata de empurrar a fatura dessa conta para os perdedores de sempre – a população trabalhadora -, e de criar caminhos para dar continuidade ao seu enriquecimento. E um dos elementos mais importantes dessa equação é saber quem vai ter mais ou menos acesso aos cofres do Estado. Basicamente é sobre isso que se trata toda a polêmica pró e contra-Dilma.

As recentes marchas e as manifestações de rua, que talvez pudessem ser a expressão de um processo de reflexão e de organização, revelam precisamente o oposto. Em ambos os protestos, muitas bandeiras nacionais, manifestantes cantando o hino e palavras de ordem nacionalistas; “militantes” pagos; “dirigentes políticos”dilma fica acompanhados por muitos seguranças particulares; agressões e demonstração de ódio contra opositores; muitas palavras de ordem comuns a ambos os “eventos” (“abaixo a corrupção”; “reforma política” etc.); e, quando os manifestantes eram questionados sobre os motivos dos protestos e sobre o que queriam ou esperavam delas, ficava evidente que não havia nada por detrás dos “slogans”, além de muita confusão mental (confiram o relato de um companheiro aqui; e vejam os vídeos aqui e aqui).

É certo que causa grande impacto a grita por um novo golpe militar, o anacrônico coro de “vai pra Cuba” ou “chupa comunista”, que são expressões conscientes ou inconscientes do mais puro ódio de classes. Entretanto, a defesa acrítica do governo e a afirmação militante da noção do “menos pior”, que aceita um caminho que evidentemente têm alimentado o “pior do pior”, revelam uma matriz comum – fanática – a ambos os campos (a)políticos.

pm tropa do bracoEm meio a tanto barulho, não se diz palavra sobre as questões que realmente importam. Que tempos terríveis, em que parece não existir história, em que parecemos presos num eterno presente, pleno de desgraças. Se é que se pode ainda perguntar pelo sentido da vida, este parece se resumir a ter mais e a parecer melhor que os demais: é só competição, ostentação, consumismo. Ficamos insensíveis em relação ao sofrimento e as alegrias dos demais; até a nossa própria vida a gente vê como uma novela, com distanciamento e com certa indiferença. Não é à toa que existe uma epidemia de doenças como depressão, síndrome do pânico, esquizofrenia, e tantas outras, que há pouco tempo achávamos que era coisa de rico. Além disso, torna-se normal nos dias de hoje vermos evangélicos realizando exercícios militares e atacando terreiros (de umbanda e candomblé); multidões escravas de um cachimbo; policiais matando, torturando e encarcerando negros e pobres aos montes, e sendo aplaudidos por isso; grupos extremistas assassinando homossexuais; milhões utilizando as “redes sociais” para destilar o ódio e os preconceitos mais bárbaros; milhares de mulheres sendo agredidas, violentadas e mortas…

Da mesma forma como “governo” e “oposição” (dois lados da mesmapm tropa 2 moeda) estão comprometidos até o último fio de cabelo com a lógica opressiva, hierárquica, alienante e exploradora do capital, forças ditas de “esquerda” e de “direita” convergem na marcha fascista em curso, expressão daquela lógica. Mesmo alguns movimentos populares que se afirmam “autônomos” e “revolucionários”, imersos até o pescoço nas barganhas e sufocados pelo seu próprio oportunismo e autoritarismo, jogam lenham na fogueira fascista; longe de estimularem a autonomia de seus membros, de abrir espaços para a reflexão e para a compreensão da conjuntura, eles buscam reforçar as falsas polarizações, rebaixar as discussões ao nível do “FLA X FLU”, e fortalecer seu caráter autoritário e manipulador.

Se o pensamento está tão fora de moda, e se a “comunicação” é propriedade de meia dúzia de grandes empresas, não pode existir liberdade de expressão; se esquerda e direita se igualam numa massa raivosa, desnorteada, e manipulável, e se os partidos de direita e de esquerda reduziram seu horizonte ao favorecimento de si próprios e dos grandes grupos econômicos, não pode existir liberdade política; se estamos todos infantilizados, incapazes de tomar decisões, não pode existir nenhum livre-arbítrio. Ainda assim, vemos milhões clamando por uma nova ditadura civil-militar. De fato, existe o perigo dos manipuladores errarem nos seus cálculos, e acabarem libertando um monstro que eles alimentam, mas que não têm poder para controlar, e que pode se voltar contra seus próprios interesses. Uma coisa é certa: enquanto ficarmos reféns dos erros e acertos de cálculos das elites, continuaremos de mal a pior. É evidente que essa escalada fascista em curso por todo o mundo só poderá ser refreada com a ação popular consciente e articulada, embasada em experiências práticas de planejamento, tomada de decisão e de controle sobre as mais diversas esferas de nossas vidas, nas mais diversas escalas. Os fascistas de plantão e de profissão de fé continuarão suas marchas rumo ao abismo. Será que iremos conseguir puxar o freio, e desbravar outros caminhos?

Vândalo é o Estado

Somos contra ou a favor dos Black Blocs?

Somos educados desde cedo a enxergar o mundo como algo chapado, achatado, como uma moeda. Tudo teria apenas dois lados: “bom ou ruim”, “bem e mal’, “a favor ou contra”. Longe de qualquer relativismo, em geral as coisas são bem mais complicadas que isso: elas possuem características diversas, e por vezes conflitantes; elas se situam em um dado contexto, elas emergem de algum lugar e num certo momento, elas mudam com o tempo e com as diferentes localidades, e assim por diante.

vandalo estadoCom a nova afirmação dos Black Bloc – que há anos tiveram um papel destacado nos movimentos antiglobalização -, e com a radicalização dos protestos de rua nas últimas semanas, surgiu uma nova onda de espanto e de respostas rápidas e fáceis: “são vândalos”, “são a vanguarda da revolução”; “fazem o jogo da direita”; “tem que quebrar tudo mesmo”.

A gente confessa que não conhece o modo como se organizam ou deixam de se organizar os Black Blocs. E sabemos que esse nome passou a rotular os mais diversos grupos, acabando com qualquer possibilidade de uma compreensão unitária. Podemos falar aqui apenas de questões táticas: com a multiplicação das manifestações de rua, e com a brutal repressão policial erumo a revolução1 midiática que se acirra desde junho em diversas cidades do país, surgiram táticas de enfrentamento, de autodefesa e de ataque às forças do Estado e aos símbolos do capital, como bancos e redes de TV. Táticas essas que se alimentam da revolta, sobretudo de jovens, contra as diversas formas de opressão e de exploração que movem o capitalismo.

Da nossa parte, na condição de um pequeno movimento popular autônomo, podemos simplesmente dizer que hoje essas táticas não nos servem. Tendo como objetivo o fortalecimento da classe trabalhadora contra esse sistema podre, que nos escraviza,post b1 nossos esforços se concentram na construção de experiências auto-organizativas duradouras, nos territórios onde agimos, e que passam pela luta direta, pela criação de laços de solidariedade de caráter classista, pelo combate ao clientelismo e ao populismo, pelo combate às hierarquias, ao individualismo, e assim por diante. Dessa perspectiva, o êxito e a radicalidade dessas tentativas se medem pela capacidade de multiplicar, desdobrar e aprofundar essas experiências.  Diferentemente do que acontece no centro da cidade, aqui o enfrentamento direto e imediato às forças policiais, por exemplo, nesse momento só nos enfraqueceria, pois as condições para isso não estão colocadas. Isso não quer dizer que num futuro próximo o conhecimento acumulado pelos Black Blocks e outros grupos não possa ser de grande importância em nossa caminhada.

Até mesmo porque o tempo está fechando, e se existem importantes potenciais na cultura de luta que tem se fortalecido nos últimos meses, também existe uma chance muito grande de tudo ir por água abaixo na base da porrada, da bala de borracha, das prisões, das perseguições, e do fortalecimento do terrorismo de Estado. Já são muitos os militantes presos, acusados de formação de quadrilha e coisa que o valha, somando-se aos milhares de outros presos políticos que lotam os presídios em preso politicotodo o país, já que o processo de encarceramento em massa, que só se acelera, além de um negócio lucrativo, é sim uma estratégia política deliberada de contenção da classe trabalhadora e de afirmação da propriedade privada. Desse modo, todo preso é um preso político.

De todo modo, e assim chegamos finalmente ao ponto: pensando as organizações populares como um todo, estamos em frangalhos, e sem um esforço tremendo em sentido contrário, corremos um sério risco de sermos esmagados. Esperamos que os Black Blocks, e que todos os que os apoiam, e todos os que são contrários a eles estejam encarando esse quadro com a seriedade necessária. Do contrário, estamos todos lascados…

O que as Ocupações revelam sobre a gestão Haddad

Parte 1 – A gestão Haddad e as Empreiteiras

Quem vive nas periferias sente na pele as trágicas consequências de um crescimento urbano movido pelo lucro das grandes empresas, que se sustenta por meio do suor e do sofrimento da população trabalhadora. De tempos em tempos somos despejados pela força da polícia ou do mercado (o aumento do preço das terras, dos aluguéis e do custo de vida), e temos que nos abrigar em locais mais distantes e precários.

semanca-fdca-grajac3ba-0071Há anos temos denunciado a maneira como a cidade de São Paulo tem sido construída e reconstruída aqui, nas bandas do Grajaú e arredores. Às vésperas das eleições, são feitos contratos com grandes empreiteiras, que não por coincidência são as principais financiadoras das campanhas político-partidárias. Sob o argumento mentiroso da preservação ambiental e da reurbanização de favelas, milhares de pessoas foram e continuam sendo despejadas, sem alternativa habitacional. Quando muito, recebem o auxílio-aluguel de 400 reais e uma promessa de moradia num pedaço de papel. Com esses despejos em massa, os preços dos aluguéis subiram às alturas, e se tornou impossível para uma família com muitos filhos encontrar uma casa aqui na região.

Por outro lado, na maioria das vezes as áreas despejadas permanecem abandonadas por anos, e nem os entulhos das casas destruídas são removidos, compondo um quadro de devastação e de risco para a vizinhança. Em alguns casos, a pq-cocaia-resisteempreiteira planta um tanto de grama e passa a chamar aquilo de parque ou de praça, que também ficam abandonados ou usados de maneira prejudicial à população do entorno. Um exemplo disso é o do Cantinho do Céu, e outro é a da Vila Brejinho: quando centenas de famílias foram removidas desses bairros, em 2010, prometia-se nesses locais a criação de um parque e de um sistema de esgoto, tanto que passaram a cobrar a água e o esgoto da população que não foi despejada. Porém, o entulho que não foi jogado na represa pela empresa responsável pela obra permanece no mesmo local em que a casa foi destruída, e até hoje o esgoto das demais residências é jogado na represa Billings sem tratamento! (Para mais informações, veja aqui, aqui e aqui)

Cada uma dessas obras tem um custo altíssimo, e um impacto social devastador. Até uns poucos meses atrás, a gestão Haddad insistiu nesse caminho de tirar as famílias humildes para criar os parques de mentira. Uma prova disso é que emdespejo 1 fevereiro, empregando os mesmos métodos da gestão anterior, a atual gestão tentou iniciar o despejo de cerca de 2 mil famílias no Parque Cocaia I, ação essa que foi barrada pela organização popular (ver aqui e aqui). E nos últimos meses vimos despejos no Jardim Prainha, no Alto da Alegria, no Jd. Eliana, e existem vários outros na iminência de acontecer.

Como temos repetido, as ocupações que se multiplicaram em nossa região são uma resposta popular a essa política de massacre. Num primeiro momento, a reação da gestão Haddad foi criminalizar as famílias em luta, chamando-as de oportunistas. Depois disso, passou a estimular e a realizar despejos, como o que ocorreu no dia 16 de setembro no Jd. da ???????????????????????????????União (no Itajaí), quando sem ordem judicial e sem aviso prévio a Prefeitura mobilizou a Tropa de Choque e outras forças policiais, que atacaram violentamente crianças, gestantes, idosos, pais e mães de família, e roubaram geladeiras, fogões, camas, instrumentos de trabalho (como maquitas, marretas, pontaletes etc.), celulares, uma filmadora, e diversos outros pertences.

Ao mesmo tempo, conseguiram uma façanha: a gestão Haddad alegava que o terreno do Itajaí seria destinado ao Parqueentulhos cantinho Linear Ribeirão Cocaia, e por esse motivo faria o despejo das famílias. Menos de uma semana depois, em reunião marcada após a ocupação da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, o Secretário de Habitação anunciou que o mesmo terreno abrigaria cerca de 5 mil moradias, e que o projeto (que como sempre não foi apresentado aos manifestantes) já estava em Brasília! A capacidade técnica da Prefeitura, que consegue fazer um projeto de 5 mil casas em poucos dias, só é superada pela sua irresponsabilidade política e social. Numa região tão carente de infraestrutura, de equipamentos de saúde, de creches, de transporte, de uma hora para outra a gestão Haddad propõem um adensamento habitacional superior ao da Cidade Tiradentes!!!

O que explica esses argumentos contraditórios, esse vai-e-vem, essa truculência, essa intransigência, esse desrespeito às necessidades da população? A resposta é uma só: vale tudo quando se trata de atender aos interesses econômicos das IMG_3803grandes empresas. Assim, o argumento ambiental é bom como motivo para despejar a população pobre, mas é logo posto de lado quando se trata de atender aos interesses das empreiteiras, os patrões do Haddad. E quem coloca qualquer obstáculo à busca desenfreada dessas empresas por lucros, mesmo com uma reivindicação legítima e de maneira organizada, é tido como inimigo mortal, que deve ser aniquilado.

Como afirmou com todas as letras o Secretário de Habitação, não existe qualquer possibilidade de discutir um projeto habitacional nos terrenos da Prefeitura, pois todos eles serão destinados às “empreiteiras da Prefeitura”. Isso é um lapso do secretário; não é a Prefeitura que possui empreiteiras, são asprot recanto centro_3939 empreiteiras que possuem a Prefeitura de São Paulo, e outras tantas prefeituras pelo país afora. Elas foram os principais financiadores da campanha do Haddad e dos vereadores do PT, e não é à toa que a administração Haddad manteve na coordenação do Programa Mananciais as mesmas pessoas que faziam parte da gestão Kassab, como o engenheiro Ricardo Sampaio, figura truculenta, arrogante e insensível. Afinal, como diz o ditado, “quem paga a banda escolhe a música”.

Não somos ingênuos, não esperamos de uma Prefeitura qualquer ação no sentido de combater esse sistema podre, que nos oprime. Mas esperávamos um mínimo de esforço por parte da gestão Haddad para evitar uma tragédia social ainda maior, mesmo que isso significasse um lucro um pouquinho menos exorbitante para as empreiteiras.

Da nossa parte, lutamos e nos esforçamos para fugir de duas armadilhas: pensamos a ocupação dos terrenos com a construção de moradias dignas, e não de caixas de concreto, itajaiSVMA_5244peqfavelas verticalizadas. Além disso, pensamos a ocupação do espaço com a criação de áreas coletivas, espaços culturais, creches, equipamentos de saúde, sistemas de transporte e áreas de lazer que preservem as poucas áreas verdes que ainda existem. É por isso que juntamos a luta por moradia com diversas outras lutas.

Diante disso, cabe refletir um pouco sobre como tem se dado a relação da administração Haddad com as lutas do povo e com os movimentos sociais, o que faremos na segunda parte desse texto.

Algumas ideias sobre o contexto atual

                 Continuamos em nossas trincheiras                   

Há tempos temos falado que vivemos um momento terrível, de grande derrota para aqueles que buscam uma transformação social profunda e não acham normal sermos escravos do dinheiro e da propriedade privada. Aqueles que consideram que a terra deve servir para atender policia mninjaàs necessidades de habitação e de produção de todos os que precisam morar e se alimentar, e não às necessidades da especulação. Aqueles que consideram que as fábricas e todos os meios de produção devem ser controlados por quem sabe usá-los, os trabalhadores, dando fim à existência de patrões e banqueiros parasitas, ou seja, acabando com a exploração, com os antagonismos de classe e com as próprias classes; e assim por diante.

Vínhamos dizendo que, nesse momento histórico, a perspectiva de uma transformação social profunda praticamente não existe mais, e mesmo nas periferias as pessoas estão tomadas por um enorme conservadorismo, por uma vontade de ser melhor do que as outras; por um individualismo que as faz procurar se dar bem mesmo prejudicando os demais; por um consumismo que as faz acreditar que a realização pessoal se resume a comprar uma televisão de plasma e o celular de última geração; por um ódio que as faz estranhar seus iguais, e idolatrar o playboy da novela; por uma cegueira que as faz aplaudir a militarização, a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, as chacinas e os massacres cotidianos cometidos contra a população pobre.

tarifa e bandeira nacionalFalávamos também que, nesse contexto, algum acontecimento como a piora na situação econômica e o aumento do custo de vida ou do desemprego poderia criar as condições propícias para algum aventureiro canalizar aquele ódio e articulá-lo em algum projeto de ultradireita, levantando bandeiras nacionalistas e outras como a da pena de morte, e da redução da maioridade penal, etc.

Afora essa conjuntura mais imediata, levávamos em consideração que as formas capitalistas de opressão e de exploração estão sendo aperfeiçoadas há séculos, bebendo de uma história milenar de violência, extermínio e alienação. Dessa maneira, a desgraceira capitalista está entranhada em nossa pele, em nossa cabeça, marca nosso jeito de falar, de sentir, de se relacionar com os nossos iguais, determina nossa rotina, canaliza e suga a nossa energia vital.

Diante de tudo isso, avaliamos que, enquanto movimento popular, estamos reduzidos à construção de pequenas experiências de auto-organização, de caráter local, que não fiquem debaixo do braço de politiqueiros, ongueiros e empresários, e que não dependam das migalhas do Estado. E com enormes dificuldades nos engajamos a nos enraizar nalguns bairros, fomentando processos organizativos e lutas diretas em torno de diversas pautas relacionadas às necessidades das quebradas. Nessa caminhada, nos esforçamos bastante para fugir da tendência de nos tornarmos marqueteiros e burocratas – “militantes”, “dirigentes”, “articuladores” e “negociadores” profissionais -, da tendência ao centralismo, à hierarquização, ao oportunismo, e ao triunfalismo (a ideia de que “estamos vencendo!”, mesmo diante das piores derrotas), enfim, tendências que predominam em boa parte das organizações de esquerda.

Enfim, não estávamos autorizados a nos espantar com a guinada conservadora das manifestações de massa que tomaram as ruas do país marcha1nas últimas semanas. Mas também não estamos autorizados a nos paralisar de medo, muito pelo contrário. Até ontem sair às ruas reivindicando o que quer que fosse era visto pela maior parte da população como aberração ou como “coisa de vagabundo”. Hoje existe a possibilidade de construir uma cultura de luta e de enfrentamento que há muito não se via. Se os conservadores tentam canalizar a revolta da população para fins destrutivos e elitistas, cabe aos lutadores e lutadoras populares colocarmos em pauta os nossos interesses de classe.   

Não temos e nunca tivemos certeza sobre os rumos que devemos tomar, e muito menos temos condições de apresentar propostas mais gerais, para o conjunto da esquerda. De todo modo, pelo sim, pelo não, insistiremos nas nossas pequenas lutas, nesse trabalho cotidiano de resultados bem questionáveis e difíceis de ver, pois acreditamos que talvez aí surjam importantes trincheiras de resistência a novas ofensivas conservadoras que se delineiam nas massas de classe média que entoam o hino nacional e repetem as palavras de ordem veiculadas pela grande mídia. Não podemos esquecer que o “Brasil” é um campo de batalha; que o Estado opressor, os patrões que sugam nosso sangue e a polícia assassina que atua nas periferias são, também, compostos por brasileiros, e nem por isso deixam de estar do lado de lá das trincheiras.

do centro pro graja. contra os massacresO povo não acordou, porque a violência que sofremos nunca nos deixou dormir, e todo dia é uma nova batalha. A periferia está sempre alerta, mas precisamos nos organizar e não nos deixar levar por bandeiras e frases ocas que representam os interesses dos nossos inimigos.

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Convite do Encontro de Formação – é neste sábado, dia 16/03

encontro rede 2013 final menor

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Encontro: Violência do Estado/Luta da Periferia

encontro rede 2013 menor

Encontro: poder popular em tempos de repressão

Cracolândia, higienização social e especulação imobiliária

O que revela e o que esconde a repressão aos usários de crack – Parte II

Outra coisa absurda que a mídia e o “poder público” estão fazendo em sua “caçada aos usuários de crack” é ignorar toda a problemática que envolve a questão do consumo  e do tráfico de drogas; quando se fala sobre a facilidade de se conseguir a “pedra”, fica parecendo que o problema é a biqueira (que, diga-se de passagem, é uma das poucas alternativas de emprego a tantos jovens pobres, e talvez a única que não tenha uma remuneração miserável), como se a venda no varejo, numa “lojinha”, não fosse apenas a ponta de um enorme sistema internacional extremamente lucrativo, que envolve grandes bancos, grandes empresários, políticos, juízes, policiais, etc., etc., de tal forma que não existe interesse em desmontá-lo; basta procurar um bode expiatório e fazer discursos moralistas contra o consumo e o tráfico de drogas.

No caso dos usuários, o fundamental é considerar como esse sistema social miserável em que vivemos, que nos condena a sofrer diversas privações, violências, humilhações, e a não encontrar sentido e realização em nossa existência, leva tantos a recorrer às drogas. Junto com isso, precisamos perceber os dependentes químicos como iguais, membros da nossa classe, que em sua maioria encontrou muito sofrimento e portas fechadas ao longo da vida. Aliás, muito deles são pessoas que foram lançadas à rua depois dos despejos, que se multiplicam pela cidade de São Paulo; são pessoas que foram mentirosamente acusadas de invasores, de destruidores do meio ambiente, e de outras coisas do gênero, que tiveram suas casas derrubadas, e que não receberam qualquer alternativa habitacional (já que não existe no município política habitacional digna desse nome). Com esses despejos, as empreiteiras ganham rios de dinheiro, e a região toda se valoriza, para benefício do mercado imobiliário; não é à toa que as empreiterias e as imobiliárias estão entre os principais financiadores de campanhas eleitorais…

Agora, independentemente de como chegaram ao vício, os usuários, que podiam ser cada um de nós, precisam de tratamento, de solidariedade, e não de pancada e confinamento compulsório. As torturas às quais estão sendo submetidos os dependentes do crack podem levá-los, ao contrário, a se aprofundar no vício e a tomar medidas extremas. E parece que é justamente isso que procuram as ditas “autoridades”: que algum usuário cometa um crime bárbaro, e assim, legitime todas as atrocidades que os governantes têm promovido, e crie a imagem de que estes são grandes defensores da “segurança pública”.

No caso da invasão da Cracolândia pela polícia, assim como no caso da ocupação da USP pela PM, e em muitos outros, ganha repercussão algo que é evidente nas quebradas: que a questão social e política é cada vez mais tida como caso de polícia, e que a presença e o poder da polícia têm aumentado muito. Com particular força no Estado e na cidade de São Paulo, os PMs estão colonizando a burocracia estatal, e a sociedade se militariza; um dos efeitos mais importantes disso é a crescente criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, e a proliferação de políticas higienistas.

[Adendo de última hora – Da redação deste texto na semana passada, para hoje, ele ganhou mais uma comprovação, ao mesmo tempo em que se tornou mais impotente. O despejo da comunidade do Pinheirinho faz com que essas linhas se tornem ainda mais amenas diante dos massacres promovidos pelas elites, por meio do Estado. Não é possível qualificar a covardia e a violência que são empregadas cotidianamente contra vastas parcelas da classe trabalhadora, e sobretudo contra aquelas organizadas em luta. O Pinheirinho desponta assim como demonstração da verdadeira face da polícia, da “justiça”, e do Estado, mas também como exemplo de resistência que, cedo ou tarde, por meio dos esforços de diversas organizações, irá se espalhar].

Apesar das declarações absurdas dos burocratas da Prefeitura, é consenso que desocupar a Cracolândia não vai resolver nada, e como era de se esperar, todo dia a mídia noticia a criação de novas “cracolândias” espalhadas pela cidade. Então, além da pirotecnia e do marketing, percebe-se que existe outro motivo para a ação da polícia, que é o de atender aos interesses da especulação imobiliária, pois existem grandes projetos urbanísticos para as áreas onde se concentram os usuários de crack, já que são áreas centrais com enormes potenciais de valorização. Mas, para isso, é preciso que elas estejam “livres” de moradores de rua e de usuários de droga. E tome prisões, espancamentos, atropelamentos, tiros de bala de borracha, gás lacrimogênio, racismo, e por aí vai.

Que belo início de ano… 

Promotor de justiça recomenda assassinato

A pena de morte no Brasil

“Bandido que dá tiro para matar tem que tomar tiro para morrer. Lamento, todavia, que tenha sido apenas um dos rapinantes enviado para o inferno. Fica aqui o conselho para Marcos Antônio: melhore sua mira…”.

A frase não é de um apresentador de programa sensacionalista. Não, é de outro tipo de parasita que se alimenta da desgraça generalizada: trata-se de um “promotor de justiça” (que ironia mais tosca), o ilustríssimo Rogério Leão Zagallo, do 5° Tribunal do Júri de São Paulo. E ele não disse isso numa conversa de bar, mas escreveu num processo em que pediu o arquivamento de uma investigação que poderia levar um policial a responder por homicídio, em função do assassinato de um homem que teria tentado roubar seu carro (veja aqui).

Com isso o promotor escancara aquilo que todos nós sabemos: que a pena de morte no Brasil só não existe na Constituição, mas que na prática é generalizada, promovida e legitimada pelo Estado, com o judiciário à frente (e/ou na retaguarda).

Enquanto isso, se multiplicam os “autos-de-resistência seguida de morte”, os desaparecimentos, as milícias, os grupos de extermínio, as chacinas, as torturas, levadas a cabo por grupos policiais ou pára-policiais. Num sistema que nos reduz a coisas descartáveis, e em que aulas de tiro e violência são ministradas pela TV a qualquer hora do dia e da noite, esse tipo de barbaridade virou rotina.

O promotor Zagallo, assim como os tantos assassinos de farda ou de terno-e-gravata saúdam essa situação, e só contribuem para agravá-la.

São os milhões e milhões de vítimas diretas dessa violência generalizada – via de regra pobres e, principalmente, negros – que podem arrancá-la das garras da normalidade, e reverter esse quadro.

Conjuntura

Por que ninguém fala sobre a conjuntura nacional? – Parte III

Consumada a vitória, e se valendo de um contexto econômico favorável, os dirigentes petistas puderam intensificar seus esforços para se consolidar no poder, e para fundir as estruturas partidárias com as do Estado. Que banquete, em que se refestelaram tantos “quadros” “sem-teto”, “sem-terra”, “educadores populares”, “metalúrgicos”, etc., com as migalhas que caíam dos pratos das grandes construtoras, dos latifundiários, dos empresários da educação, dos dirigentes industriais, dos banqueiros… “Traidores!”, assim comumente os chamaram os que não escolheram o mesmo rumo. Mas será que isso basta para explicar o que se passou? Não seria melhor começar a buscar os “porquês” nas respostas equivocadas dadas pelas organizações às contradições e aos limites que o capitalismo nos impõem a todos e todas que lutam? Por exemplo, a imitação da lógica estatal e empresarial, com a profissionalização dos militantes, o centralismo, a burocratização, e a busca pelo êxito eleitoral, como se o Estado fosse uma estrutura oca, neutra, esperando para ser ocupado por um bom ou um mal governo, ou como se o caminho eleitoral não sugasse as energias, e não homogeneizasse tudo pela farsa do debate, pelo marketing, pela necessidade de grandes financiamentos, pelos lobbies, etc., enfim, toda essa novela tantas vezes encenada, em tantos lugares e épocas distintas, sempre com um final tão trágico para nós, aqui de baixo.

E para coroar a sua “marcha triunfal”, os “companheiros” petistas se fizeram os anunciadores de um novo mundo, fruto da difusão do crédito pessoal. Em meio aos velhos e novos famélicos, que as “bolsas-isso” e “bolsas-aquilo” evidentemente não eliminaram, o Brasil se torna assim o éden do consumo predatório, a terra prometida dos televisores de plasma e dos telefones celulares de última geração. Aqui se estranha os iguais, na mesma medida em que se idolatra o playboy empresário, o artista da novela, e a nova promessa do futebol. A multidão de moradores de rua; os despejados; os incontáveis jovens pobres – geralmente negros – exterminados pela polícia; o exército de viciados em álcool e drogas, as fileiras de mulheres oprimidas, espancadas, violentadas, reduzidas a meras mercadorias; a falta de médicos e remédios; as horas diárias presos no trânsito; a escravidão pelo dinheiro; a incerteza em relação ao dia de amanhã; a desconfiança; o medo; tudo são ossos do ofício, tudo se torna normal, tudo se tenta esquecer ou justificar como necessário ou inevitável.

Eis aí a grande derrota que sofremos. Em questão de décadas, o ímpeto de um projeto coletivo de transformação social, que mobilizava grandes contingentes populacionais, é substituído por um voraz individualismo consumista. Não é à toa que atualmente em terras brasileiras são requentadas as velhas pataquatas pós-moderninhas do fim das classes, dos “ressentimentos”, das clivagens entre esquerda e direita, da história, enfim, junto com o “relaxa e goza” desesperado, repetido como um mantra por uma horda de esquizofrênicos e depressivos.

Sim, de onde olhamos, são tempos sombrios para aqueles que não colocam um preço em seus princípios e seus anseios, em sua indignação e sua coragem, e para os que não podem se esconder sob a máscara do cinismo. Ora, jamais nos foi regalada a capacidade de escolher as condições nas quais buscamos fazer a história. Mesmo assim, subsiste a necessidade de caminhar, de continuar uma andança que começou em tempos imemoriais, contra imemoriais formas de opressão e de dominação.

Presos a um eterno presente, divididos em mil fragmentos desconexos, incapazes de aprender com o passado, de imaginar e batalhar por um futuro que não seja um simples “mais do mesmo”,  somos condenados a não saber quem somos, e assim, não vivemos o ontem, não conseguimos viver o agora, e continuaremos vegetando no amanhã, indignos. É preciso escutar e aprender a decifrar os signos por meio dos quais os que nos antecederam nos legaram lições preciosas. Faz-se necessário construir nosso senso de história, encontrar e também cerzir os fios invisíveis que nos conectam a um passado de luta, de resistência, de compromisso, de dedicação, de esperança, que não respeita fronteiras, nem o tempo do relógio.

Por mais negativa que seja nossa compreensão do presente, os descaminhos da esquerda brasileira nas últimas décadas nos revela os potenciais de um ascenso de classe sustentado por lutas diretas e experiência coletivas e verdadeiras. E também nos chama a atenção para as nossas vulnerabilidades frente ao reformismo, à covardia, e ao oportunismo. Diante disso, percebemos que negar esse caminho, e fazermos a crítica ao capitalismo como um todo (incluindo, portanto, o Estado, às estratégias eleitorais e parlamentares, e à lógica empresarial e burocrática), bem como nos lançarmos à construção da autonomia, da auto-organização, do poder popular, para além dos discursos, sem dúvida é o mais difícil, mas é, ao mesmo tempo, nada menos que uma questão de sobrevivência.

Conjuntura

Por que ninguém fala sobre a conjuntura nacional? – Parte II

            Mas é o caso de nos explicarmos melhor. Há poucas décadas, germinaram sob o solo devastado por uma brutal ditadura militar um sem-número de experiências organizativas bastante ricas, diversificadas e significativas. Dentre as mais conhecidas estão: as imensas mobilizações e greves da região do Grande ABC paulista, antecedentes imediatos da criação da CUT (Central Única dos Trabalhadores), em 1983, uma central sindical que logo se estabeleceu em âmbito nacional; as greves dos bóias-frias e a onda de ocupações de terra rurais, que beberam da experiência das Ligas Camponesas e que logo dariam origem ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em 1985; e tantas iniciativas urbanas de luta por saúde, educação, moradia, transporte, etc., que reuniram muitas pessoas e deram origem a muitos movimentos sociais. Como sabemos, esses três conjuntos de experiências se relacionam à multiplicação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e sofreram influência da Teologia da Libertação; além disso, eles estiveram bastante implicados na criação e consolidação dos Partidos dos Trabalhadores (PT), em 1980, o “partido do Lula”.

      PT, CUT, MST… Se os mencionamos e os tomamos como representativos é devido à importância que tiveram e que ainda têm; não é simplesmente porque resumem todo o processo histórico que lhes deu origem, de modo algum. Por outro lado, sob essas bandeiras se abrigam tantos esforços, contradições, frustrações, conquistas, disputas, que estamos longe de algo monolítico e homogêneo. Da mesma forma, a despeito de serem expressões do mesmo contexto, e compartilharem uma série de características, seria absurdo simplesmente identificá-los, como se fossem a mesma coisa. Suas trajetórias demonstram isso.

     Na década de 1990, sob a égide massacrante do que se convenciona chamar de neoliberalismo, essas três organizações prosperaram. A CUT e o PT, por motivos que logo mencionaremos e sob o impacto da derrota nas eleições presidenciais de 1989, fizeram-no com uma linha “pragmática” e cada vez menos radical, devotada à disputa por estruturas e à conquista de espaços na máquina estatal (e também nos fundos de pensão e coisas que tais), a coalizões, barganhas, conciliações, conchavos, lobbies, e por aí vai. Já o MST cresceu e se fortaleceu principalmente por meio do caminho da luta direta, fazendo diversas ocupações de terras, e, no interior de seus acampamentos e assentamentos, tendo de considerar as formas de sociabilidade de modo mais integral, e se colocar às voltas com diversas questões práticas relativas à produção, à educação, à formação política, entre outras.

        De todo modo, o fortalecimento dessas e de outras organizações criaram um ambiente aparentemente promissor, e apesar das singularidades de cada uma delas, das disputas, das contradições, o fato é que uma parte bastante expressiva da “esquerda” brasileira apostou pesadamente no caminho capitaneado pelo PT, sobretudo diante das perspectivas reais de vitória de Lula nas eleições de 2002. Com isso, a força e a vitalidade de boa parte das iniciativas de base (ou desde “baixo”) minguaram, e mesmo organizações que se mantiveram combativas freqüentemente se burocratizaram e se engessaram.

Conjuntura

Por que ninguém fala sobre a conjuntura nacional? – Parte I

Pois é, este é apenas mais um texto sobre conjuntura. E talvez na cabeça do leitor esteja latejando a mesmo pergunta que também nos atormentou: “por que tem gente que perde tempo produzindo um troço deste?”. E o que é ainda mais decisivo nesse momento, “para que gastar meu tempo lendo isso?”. A gente bem que queria, mas essas respostas não temos como dar…

De nossa parte, se temos alguma coisa que nos diferencia em relação aos que costumam escrever esse tipo de texto, não é nada muito sedutor: não somos intelectuais (nem profissionais, nem orgânicos, nem de nenhuma outra espécie), não somos dirigentes (nem políticos, nem industriais, nem nada que o valha), não somos formadores de opinião (não temos parte com os grandes meios de comunicação, nem somos publicitários, não somos artistas profissionais, e estamos longe de pertencer ao clube dos famosos). Somos apenas militantes de um pequenino movimento popular, recém-criado, que mal começou sua caminhada, e que ainda assim acumula mais tropeços do que passos, nas estreitas e sinuosas veredas da luta de classe. Enfim, somos ninguém, um punhado de ninguéns que volta e meia nos metemos a escrever…

Quando pensamos na atual conjuntura brasileira, são muitos os temas que nos vêm à mente. Afora os “escândalos” da vez, que não escandalizam mais ninguém, como os casos Palloci, ou a corrupção nos ministérios do Transporte, das Cidades, do Turismo, etc., e as conseqüentes avaliações sobre os rumos do governo Dilma e coisas que tais, muito se discute sobre os Jogos Olímpicos de 2016, a Copa do Mundo de 2014 – os tais “mega-eventos” -, ou sobre o andamento da economia brasileira, supostamente um “exemplo mundial” em função das taxas de crescimento do PIB que sustentou nos últimos poucos anos.

Bem que podíamos gastar essas linhas lembrando o quão desigual é esse crescimento, e algumas de suas conseqüências sociais e ambientais perversas. Ou então, falar sobre os interesses por detrás dos mega-eventos, os grandes grupos econômicos presenteados pelo Estado com rios de dinheiro para a realização de obras superfaturadas e em grande parte inúteis, a corrupção em torno delas, os violentos despejos em massa da população pobre que não deve atrapalhar a paisagem nem o movimento dos tratores, as tentativas de calar as vozes dissonantes, e assim por diante. Ou ainda, poderíamos falar sobre o caráter estrutural da corrupção, parte necessária do funcionamento do Estado e do sistema político-partidário. No entanto, escreveremos, ao contrário, sobre algo que talvez componha o pano de fundo desse quadro.

Indo sem mais demora ao ponto, sofremos hoje as conseqüências de uma importante derrota histórica, uma derrota, é evidente, cantada em verso e prosa, e muita pirotecnia, como um êxito sem precedentes, uma prova inconteste do “progresso nacional”, a inauguração de uma nova era, segundo os vencedores de ocasião. “De ocasião”, dizemos, porque desta vez, além dos inimigos de sempre, os que não têm cessado de vencer, estão aqueles que volta e meia são chamados a repartir o butim; trata-se dos burocratas, dos politiqueiros, daqueles “companheiros” convocados para gerir o capitalismo (em geral quando este se encontra ameaçado de alguma forma), e para conter os ânimos revolucionários, o que por vezes inclui realizar o massacre das experiências mais radicais e autênticas que os de “baixo” conseguem produzir.

Conjuntura: Sobre o bolsa-aluguel

“Aluguel-Social” ou “Tragédia Social”? – Parte I

Há tempos temos denunciado a farsa do chamado “aluguel-social” ou “bolsa-aluguel”, um cheque-despejo disfarçado. Mas vale a pena pensar melhor sobre isso que virou a base da “política habitacional” paulistana.

Como funciona o tal “bolsa-aluguel”?

Numa situação de despejo, em meio a uma série de ameaças, mentiras, e agressões, feitas por assistentes sociais, funcionários da Defesa Civil, policiais e outros membros do Estado contra a população pobre, em troca das suas casas é apresentado aos moradores o “bolsa-aluguel”. “É pegar ou largar”, dizem aqueles abutres.

Desesperadas, muitas pessoas acabam deixando seus tetos por um destino incerto. Perdem vários vínculos sociais, se afastam de amigos, deixam de contar com o apoio de vizinhos, tem todo o tipo de dificuldade para conseguir a transferência de escola para seus filhos, que freqüentemente acabam perdendo o ano escolar, e por ai vai.

O valor do bolsa-aluguel é baixo, geralmente 300 ou 400 reais, entregues de 6 em 6 meses na forma de um cheque de 1800 ou 2400 reais. Além disso, a notícia de que o “benefício” vai ser distribuído acaba causando duas coisas: por um lado, um aumento dos roubos na comunidade; por outro, um processo local de especulação, de modo que os preços das casas de aluguel sobem às alturas, e ninguém mais acha um canto para alugar por esse valor. E quem tem filhos sofre ainda mais, porque é quase impossível encontrar algum proprietário que aceite uma família com mais de 2 crianças. Outra coisa que os proprietários exigem são os dois ou três meses de depósito, que o tal “aluguel-social” não prevê, e a família tem que se virar para conseguir.

Apesar de haver situações em que nem isso ocorre, atualmente o procedimento “normal” do Estado é fornecer um contrato de renovação periódica do “bolsa-aluguel”, e uma promessa de inclusão da família em um programa habitacional. Mas, geralmente, nesse contrato, não se fala nem onde, nem quando serão construídas as novas moradias.

Todo mundo sabe que só na cidade de São Paulo existem milhões de pessoas nas listas de espera dos programas habitacionais, que milhares de famílias estão sendo despejadas todos os anos, e que só um punhadinho de casas está sendo construída (punhadinho que é prometido para “Deus e todo mundo”, ano após ano, como é o caso dos prédios na Mata Virgem, Divisa de Diadema). E mesmo que a família tenha a sorte de ser uma das poucas escolhidas para ocupar essas casas, teria ganho com isso uma grande dívida, e passaria anos e anos e mais anos lutando para pagá-la, parcela por parcela, até ter novamente um teto que é seu.

Nesse contexto todo de ameaças, mentiras, insegurança, isolamento, desconfiança, humilhação, é evidente que temos um cenário ideal para desgraças. Muitos entram em depressão, enlouquecem, se afundam no álcool e noutras drogas, gastam o dinheiro do “auxílio” de um jeito inconseqüente, e famílias inteiras acabam numa situação muito pior, vivendo de favor ou nas ruas.

Longe de resolver o problema da habitação, esse problema é agravado, junto com vários outros. Eis a realidade por detrás do “aluguel-social”…

Continuação da série sobre conjuntura

Classe e Periferia

A discussão é bastante difícil, mas é possível dizer que, historicamente, a esquerda teve como espaços primordiais de atuação os sindicatos e os partidos políticos. Segundo algumas análises clássicas, essas organizações podiam exercer um papel complementar: os sindicatos e movimentos sociais estariam incumbidos de travar a luta econômica, geralmente específica, e com certa dosagem de corporativismo. Já os partidos unificariam essas lutas e a politizariam – superando o âmbito da luta meramente econômica e setorial – de modo a concentrar as condições para a disputa do próprio Estado, e para desencadear os processos revolucionários. Desse ponto de vista mais tradicional, geralmente a periferia e a população que nela reside foi deixada em segundo plano, ou foi tida como uma força conservadora, sendo rotulada “lúmpen-proletariado” (algo como “proletariado-esfarrapado”, ou a “raspa do tacho” da classe trabalhadora).

Nesse momento talvez seja saudável e mesmo necessário rever tais posicionamentos e estratégias. Em primeiro lugar, é preciso pensar a classe, e isso não pode ser feito de maneira simplista e dogmática; a classe revolucionária não é algo dado, fixo, mas algo que se constitui, e essa constituição envolve o espaço que ela ocupa na produção, mas também dimensões simbólicas, culturais, e sua prática política real. Uma dimensão essencial da classe revolucionária é a consciência revolucionária, relacionada à compreensão de como funciona a acumulação capitalista, à compreensão dos mecanismos de exploração e dominação, à compreensão do caráter alienante dessa sociedade, e à necessidade de estratégias para combatê-la, com base na conjuntura do momento. Portanto a classe revolucionária não é, ela se forma – ou deixa de se formar – a cada instante, assumindo diferentes características de acordo com o contexto; o mesmo se pode dizer das organizações da classe.

A tendência do capital é sempre promover a exploração sem peias, e sob certas condições ele consegue eliminar os limites impostos pela legislação, aumentando a jornada de trabalho, acabando com direitos trabalhistas, com a estabilidade de emprego, etc. Tais mudanças têm importantes impactos na constituição da própria subjetividade dos trabalhadores, e evidentemente para a sua organização enquanto classe, mas nem por isso faz com que eles deixem de ser trabalhadores (na ativa de modo cada vez mais diverso ou constituindo o exército industrial de reserva), e nem faz desaparecer qualquer possibilidade de organização e de formação de consciência de classe.

Enquanto o espaço da produção mantém sua importância como espaço de organização da classe, a importância da dimensão territorial aumenta, e se faz notar o dinamismo político potencial que reside nas periferias das grandes cidades. Não é possível estabelecer aqui nenhuma idealização: nas periferias o espaço está segmentado por uma série de forças conservadoras e regressivas; nas periferias atuam e incidem todas as pressões que levam ao embrutecimento, ao isolamento, ao individualismo; nas periferias também são cultivadas as idéias burguesas de defesa da propriedade, do consumismo, do sonho por ascensão social; nas periferias a população super-explorada é estimulada o tempo todo – pela novela, pela propaganda, pelo programa de rádio, pelos políticos, pelas igrejas -, a acreditar em falsos messias, a acreditar que a felicidade é a capacidade de comprar o celular mais moderno, ou a se conformar, a se resignar. No entanto, nas periferias também existem elementos que, sob certas circunstâncias, podem dar origem à solidariedade, à ajuda mútua, à revolta, que são base para processos qualificados de organização e de luta.

A história de muitos dos moradores da periferia é uma história de luta e de resistência; freqüentemente as condições materiais exigem que as pessoas se ajudem, e as precariedades e violências a que estão submetidas as empurram para processos de organização popular. Além disso, o rebaixamento das condições de subsistência atinge tal grau que as pessoas, trabalhando de maneira esporádica, conseguem garantir a sobrevivência e ainda ter tempo para participar de reuniões, de lutas, de processos formativos, etc.

A construção organizativa de base territorial necessita o desenvolvimento de processos orgânicos no interior das comunidades, embasados na dinâmica e nas especificidades de cada lugar, e levando em consideração o cotidiano, as trajetórias pessoais e coletivas, o imaginário, os laços de identidade de seus moradores. É lidando com a rotina, as carências, os medos, os anseios das pessoas e as características do lugar que se pode fomentar lutas e outras rupturas que se fazem necessárias para quebrar com a inércia conformista que impera por todo o lado, e para converter os laços territoriais em identidade e consciência de classe. O caráter orgânico desse processo faz com que a dimensão da formação política seja estratégica, de modo a fazer com que os processos de luta e de organização sejam levados adiante pelas próprias referências das comunidades. Em nosso caso, a maioria das referências são mulheres adultas, mas a tarefa também é encampada por pessoas de todas as idades, independentemente do gênero, bem como grupos e coletivos locais.

Uma atuação dessa natureza não pode assumir caráter “corporativo”, e ainda que se concentre em algumas estratégias e táticas básicas de intervenção, deve possibilitar a criação de respostas (e mesmo distintas respostas) a diversos tipos de reivindicação econômica, que, por estarem coladas a processos formativos, devem ser sempre e cada vez mais politizadas.

A luta da Rede de Comunidades do Extremo Sul se faz na construção de uma organização popular autônoma e combativa, que fortaleça a luta da classe revolucionária nos territórios periféricos.

Conjuntura

A construção da cidade e o Extremo Sul

Está em curso o maior processo de despejos em massa já feito na história da cidade de São Paulo. Para justificá-lo, foram escolhidos dois discursos mentirosos, repetidos à exaustão: a defesa do meio ambiente e o investimento em infra-estrutura. Assim, por toda parte, dezenas de milhares de famílias estão sendo despejadas em meio à implantação de projetos megalomaníacos (ex. “Programa Mananciais”, Rodoanel, ampliação das Marginais) e políticas como “Operação Defesa das Águas”, “Operação Córrego Limpo”, tendo destaque aqui a construção de dezenas de parques lineares e praças. Com as obras e os projetos em curso, as áreas afetadas são valorizadas e passam a servir melhor à especulação imobiliária. Assim, além de uma imensa fonte de corrupção e de desvios de verbas, essas obras servem para encher os bolsos das empreiteiras, incorporadoras, imobiliárias e outras empresas que são, de longe, as principais financiadoras de campanhas eleitorais. Por outro lado, são gastos milhões e milhões em propagandas dessas obras, com objetivos eleitoreiros.

Os bilhões destinados aos projetos citados, tão bonitos no papel, nunca se revertem em benefício das pessoas afetadas, como demonstra o caso da “Operação Faria Lima”, em que centenas de milhões de reais originalmente destinados à construção de moradias populares para as milhares de famílias despejadas acabou sendo gasto na tal Ponte Estaiada. Ao invés de respeito e atendimento habitacional, as famílias afetadas são criminalizadas por ocupar uma área de maneira irregular, e por crimes ambientais.

A verdade que não se conta é a seguinte: foi com muita violência que uma minoria se apossou das terras e passou a oprimir a maioria da população, que, sem opção, teve que construir suas moradias longe do centro, em áreas sem infra-estrutura. Se a população pobre ocupou e ocupa áreas “irregulares”, beiras de rios, barrancos e áreas de mananciais foi porque não teve alternativa, e tirá-la de lá para outra área “irregular” não é solução.

No caso da nossa região, o primeiro momento de forte expansão se deu na década de 1970, mas esse ritmo é até hoje bastante acelerado. Nesse momento, a ocupação estava relacionada ao êxodo rural e à expulsão das populações pobres das regiões centrais da cidade. Por conta da legislação ambiental criada naquela época, o Estado se desobrigou de desenvolver aqui infra-estruturas e um processo regular de ocupação, o que fez com que a região permanecesse relativamente barata. Num conluio entre grandes proprietários, advogados, políticos e outros burocratas, criaram-se grandes loteamentos irregulares, o que significou um primeiro movimento de valorização, já que os grandes latifúndios – grilados e roubados – , mantidos inteiros, tinham pouco valor, ao passo que divididos em milhares de pequenas partes, passaram a ser uma incrível fonte de dinheiro.

Atualmente, essas áreas despontam como uma nova possibilidade de se fazer dinheiro; assim, se pretende expulsar violentamente uma parte da população mais pobre, regularizar a situação dos demais (o que significa inserir de fato a região no mercado imobiliário), e investir em infra-estrutura. Os que não serão despejados de um jeito, serão de outro, já que existe mais de uma forma de espoliar e despejar a população pobre: algumas envolvem processo jurídicos, oficiais de justiça e Polícia Militar; outras envolvem a cobrança de todo tipo de taxas e serviços, o encarecimento do custo de vida na região, os processos de especulação imobiliária, ou seja, a lei do mercado que promove expulsões veladas. Não é à toa que a regularização fundiária há tempos é política do Banco Mundial.

Por outro lado, ninguém é mais interessado na preservação das águas do que nós, que moramos próximos à represa, onde há poucas décadas era possível nadar e pescar. E somos nós que mais padecemos com a poluição, obrigados a conviver diretamente com ela, expostos à pragas e doenças. Se residimos em áreas de mananciais – dentro da qual estão também o Autódromo de Interlagos, grandes mansões, etc., que evidentemente não sofrem qualquer ameaça – é porque não temos alternativa.

Sabemos que é possível conciliar nossa própria existência com a preservação ambiental, por meio de uma ocupação ordenada do solo, e com a implementação de sistemas de coleta de lixo e de redes de esgoto adequadas. A verdade é que os grandes poluidores das águas da Represa Billings (o maior reservatório de água doce em área urbana do mundo) foram e continuam sendo as grandes empresas que, estimuladas pelo Estado e sem qualquer fiscalização, instalaram-se às margens da represa, lançando em suas águas seus dejetos tóxicos e seus metais pesados.

Diante de tudo isso, dizemos sem medo de errar: não é invasor nem bandido o povo que vive em condições difíceis, que acorda cedo e dorme tarde, que passa horas em ônibus e trens lotados, que trabalha o dia todo para construir e manter funcionando toda essa cidade, que não consegue médico nem remédio quando realmente precisa, que volta e meia é humilhado pela polícia, que batalha duramente para ter seu teto. Invasor e bandido é o engravatado num gabinete do governo ou num escritório de empresa que rouba, explora e que expulsa famílias inteiras de suas casas.