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Conjuntura

A produção da cidade e de suas periferias

As cidades concentram hoje, em quase todos os países, e cada vez mais, a maior parte da população do planeta. As periferias urbanas, por sua vez, crescem num ritmo bem mais acentuado do que o restante da cidade, e mesmo segundo previsões conservadoras, como a apresentada pelo relatório ONU-Habitat de 2007, a tendência nas próximas décadas é que bilhões de pessoas morem em favelas, e que a pobreza atinja quase metade da população que vive no meio urbano.

No espaço da cidade estão desenhadas com ferro, fogo, sangue e suor a segregação social, a desigualdade, as espoliações. Na cidade temos as regiões em que se concentram os ricos, e onde imperam o luxo, a ostentação, o consumo desenfreado e destrutivo, os serviços caros – lugares que são literalmente vendidos como “ilhas de riqueza”. Esses espaços, que abrigam os grandes empresários, os grandes dirigentes industriais, os grandes banqueiros, os grandes especuladores (que por vezes são as mesmas pessoas), se confundem com os espaços de poder político, os verdadeiros espaços de decisão do Estado; são espaços vigiados, cheios de câmeras, seguranças privados, policiais, carros blindados, onde a pobreza – mais do que noutros lugares – é crime inafiançável, e o pobre só entra como um mal necessário – na forma de mão-de-obra – e ainda assim de um jeito bem controlado. Nessas regiões os poderes político e econômico têm realidade palpável nas construções, e delas irradiam certa estética, certa linguagem, certos códigos, certos padrões de conduta, certa moral, e uma série de mecanismos que constituem a ideologia burguesa – o conjunto de idéias que servem para legitimar o existente, ocultar suas mazelas, e bloquear sua crítica.

Vinculada a essa dimensão ideológica e simbólica está a dimensão econômica da cidade, pois concentrando um grande número de indústrias e de serviços, bem como o grosso do mercado consumidor, as cidades são elas mesmas um espaço econômico de produção e reprodução capitalista – e um escoadouro de capital sobreacumulado noutras partes -, seja pela indústria da construção civil, seja pela produção da renda da terra (o dinheiro que se pode conseguir mediante aluguel em função da propriedade da terra, e que varia em função da localização, do que existe construído na terra, do marketing, e de tudo o que envolve a especulação imobiliária), seja pela valorização financeira (especulação com as ações das grandes construtoras e incorporadoras, títulos de todas as espécies, créditos hipotecários, etc.), e por aí vai.

Esses processos de valorização e de afirmação do poder capitalista não podem estancar jamais; precisam sempre se repetir e se renovar. A construção e a reestruturação do espaço geográfico, sobretudo urbano, que muitas vezes incluem monumentais destruições e desvalorizações do ambiente construído, é absolutamente vital para a reprodução do capital, e os fluxos de capital e de capital fictício necessitam circular de maneira predatória pelo espaço urbano (basta pensar na recente crise econômica mundial).

Tomando como base a cidade de São Paulo, vemos que, se ainda ontem foram iniciadas a Operação Água Espraiada e a Operação Faria Lima, com suas pontes estaiadas e com a remoção brutal das favelas que lá existiam há décadas, hoje esse processo tem que se concluir (por exemplo, com a extinção da Favela do Jd. Edite), e outras frentes tem que ser criadas, como os “Programas Mananciais”, as “revitalizações” do centro e do centro expandido, os “Expressos Tiradentes” e os “Rodoaneis”, a contratação de grandes obras arquitetônicas, as maquiagens necessárias para se “receber” a Copa de 2014, e por aí vai. Todos esses processos, levados adiante pelo Estado e pelo grande capital, implicam em importantes modificações do espaço urbano, que afetarão muitos milhares de pessoas. Apesar dos enormes investimentos – em obras e propaganda -, dificilmente serão dadas respostas minimamente satisfatórias às populações que serão despejadas ou removidas, o que revela o fundo perverso do sistema capitalista e abre brechas para a organização política e para a luta direta, as quais, se bem direcionadas, poderão atingir diretamente o cerne da acumulação do capital.

Mesmo essa análise inicial já nos conduz a entender a dimensão territorial como estratégica para construção de processos organizativos, sobretudo nas periferias das grandes cidades, os espaços onde as promessas do sistema – de igualdade, de oportunidade, de justiça, de satisfação, de alegria – são quebradas de um jeito ainda mais violento; onde estão concentradas grandes massas daqueles que têm pouco a perder além dos seus grilhões, mas que, como parte de toda uma longa história de luta, de coragem, de perseverança, têm um mundo a construir.